Especial

Um par de sandálias novas
Só faltava mais um real e Vanilson teria o dinheiro pra comprar um par de sandálias novas. Ele, que passara duas semanas juntando dinheiro, já não agüentava mais a triste vergonha de andar com um par de havaianas surradas. Vez ou outra ele perdia a noção e dava uma topada, coisas de um desleixado, que costuma vagar pelas ruas mal-feitas do bairro, tantas deformidades resultam mesmo em belas topadas. Num desses acidentes o biloto do cabresto se soltava, ai lá vinha o constrangedor ritual de ter que se abaixar e consertar o chinelo quebrado. Pior eram os olhares dos que passavam e se perdiam naquela cena: Um adolescente envergonhado e suas sandálias velhas.

Apesar da pobreza, Vanilson mantinha a vaidade, se preocupava muito com a aparência e, por tanto, fazia qualquer sacrifício pra não andar por aí vestido de qualquer jeito. Por isso, tanto pesar por não estar bem calçado. Isso era mesmo coisa daquela idade, como é difícil ter 14 anos. Se adolescência já é difícil para um garoto comum, para Vanilson tudo era muito pior, pois não bastava o fato dele ser pobre, ainda tinha que agüentar as brincadeiras dos outros garotos, que constantemente se juntavam nas esquinas pra lhe zombar do jeito afeminado. Também pudera, o Vanilson só andava com mulher pra cima e pra baixo. Era só com meninas.

- Eu vou andar agarrado com homem, por acaso, seus bestas?!

E ele seguia ao som das vaias dos moleques. Só ganhava os costumeiros trejeitos dos rapazes da sua idade, quando um deles passava da conta e o coitado do Vanilson tinha que resolver na porrada. Nessa hora ele virava homem. Batia de verdade.

Faltava só um real. Vanilson decidiu esperar pela mãe que chegaria do trabalho lá pelas 10 da noite, quando ela chegasse, ele certamente teria o que faltava e pronto: comprava a chinela nova. Porém, tudo aconteceu um pouco diferente do esperado. Não sei porque, Vanilsom foi dormir mais cedo naquele dia. Pegou no sono antes das nove, assistindo TV. Parece que a novela lhe chateava demais quando exibida na época do horário de verão, ou talvez fosse a esperança que lhe desse sono. Adormeceu no sofá velho, nem se importava com a madeira saliente do sofá, que se projetava contra o ombro esquerdo. Ele só foi se acordar quando a mãe dele chegou. Ela abriu a banda de cima da porta e já puxava o ferrolho da banda de baixo quando o Vanilsom despertou do sono.

- Tu já tava amarrado no rabo da gata numa hora dessas, Nilsim?
- Foi não, mãe, é que eu cochilei.
- Cadê a chinela nova?
- Comprei ainda não, mãe.
- Valha-me Deus! Ainda num comprou esta chinela, Nilsim?
- Não, mãe - disse ele balançando a cabeça.

A mãe dele deu o bendito um real que faltava e, sonolento, Vanilson caminhou até uma rede que estava armada no quarto e se deitou, se cobriu com um velho lençol branco e, entre bocejos, disse:

- Amanhã vou comprar...

Oito horas da manhã e o Vanilson despertou. Estava tonto e preocupado. Procurou pelo dinheiro e lembrou que o havia guardado no bolso da bermuda com a qual dormira. Levantou-se apressado e nem fez os cuidados da manhã. Correu para a rua de qualquer jeito, com tão pouca vaidade, que só apertou os cabelos pra evitar o ar de assanhado e trocou de camiseta. Não quis nem saber do resto. Com tanta pressa ele, já ofegante, quase alcançava o destino. Chegou à uma pequena loja de variedades e pediu pra ver as sandálias. Olhou uma por uma e encontrou o que queria: uma verde e branco, tamanho 40. Era a única do tamanho dele. Tendo o precioso objeto na mão, correu sem poder segurar a euforia. Ele todo era felicidade. Retornou à casa e sentou-se no velho sofá da sala mirando o novo par de sandálias. “Estas chinelas são mesmo incríveis!” Isto era o que seu semblante parecia dizer. Ficou tão apaixonado por elas que largou as antigas num saco plástico junto com o lixo no quintal.

À tarde foi visitar as amigas de sempre, foi na casa da Bruna e ela não estava. Procurou pela Denise, pela Neide e recebeu a noticia de que as meninas se reuniam na casa da Eduarda, dirigiu-se até lá e esperou um tanto ancioso, estalando os dedos, em frente ao portão, depois que tocou a campainha. Uma agregada da casa, uma tal de Lucia, lhe recebeu fazendo perceber o chão que acabara de polir:

- Tira a chinela pra não manchar o piso – disse ela por cima do ombro.

Foi um ato quase triste, ter que largar algo que conseguiu na base de tanto custo. Caminhou até um tapetinho ridículo, à toa na passagem para a sala, e lá deixou seu precioso bem. Foi descalço até à cozinha, onde suas amigas estavam. Foi nessa hora que ele ouviu um latido, um latido fino, era de um poodle, Willy, que pertencia a Eduarda. Vanilsom conversava em paz quando viu o cachorro correr entres os visitantes, balançava o rabo cheirando as pernas de todos. De repente, o cão correu para a sala e pôs-se a rosnar como se mordesse algo. Nessa hora Vanilsom preocupou-se:

- Meu Deus, minha chinela!

E ele correu louco até a sala ficou inerte diante do que viu: o tal Willy destruíra um dos pés da sandália. Vanilsom não soube como reagir, abaixou-se contendo a raiva e a tristeza, apanhou o prejuízo e correu para a rua. Saiu andando apressado e pode-se ver que enxugou algumas lágrimas. Deu de cara com o caminhão do lixo, teve um mau pressentimento. Chegou em casa desesperado e correu para o quintal, depois de um gole d’água do filtro de barro.

– Que desgraça! Disse sozinho.

O lixo não estava mais lá. Correu o quarteirão de ponta à ponta, mas infelizmente nem se quer ouviu o barulho do caminhão. Era tarde demais: estava descalço. Sentou num banco qualquer construído no acostamento de uma larga rua próxima de sua casa. Ficou por lá, meditando na infelicidade que tivera. Mal comprara a droga da sandália e já estava sem ela.

- A porra desse cachorro véi – tristemente disse ele ao vento.

Ficou lá sentado pensando na desgraça, com o queixo apoiado na mão. De repente ele levantou a cabeça e viu que a Eduarda se aproximava, baixou a cabeça novamente e franziu o cenho. A duro custo segurou uma lágrima.

- Hei, Vanilsom, porque que tu foi se embora duma vez sem dizer nada?
- Ora mais. O teu cachorro destruiu minha chinela nova. Olha aqui, num presta mais pra nada – disse ele mostrando a sandália estragada pelo cão.

Ele ficou de cabeça baixa até que a Eduarda disse:

- Hei, menino, calma. A mãe me deu dinheiro pra comprar uma chinela nova pra ti.
Foi difícil, mas ele deixou um sorriso sair. Saíram, então, os dois abraçados procurando uma lojinha. Ela pedindo desculpas a ele e ele tentando fingir que não estava descalço.

5 comentários:

Sessyllya ayllysseS disse...

Esse texto me lembrou muito os contos do Luiz Vilela: tem uma delicadeza muito grande disfarçada de humor.

A gente até ri (ou pelo menos sorri) da "desgraça" do pobre do Nilsim, mas a trajetória dele mostra o quanto a vida é injusta.

Nenhuma chinela nova será capaz de substituir o par verde-e-branco... Depois de tanto sacrifício, Nilsim só queria poder desfrutar do que havia conseguido...

Vc retratou tudo de um jeito muito legal. O texto ficou leve por causa do humor, que é o seu toque característico e responsável por prender a atenção dos leitores. Por outro lado, foi objetivo na medida exata para garantir a seriedade do assunto.


Valeu a pena esperar uma semana...
Sinceros parabéns!!!
Bjus!!!

Darshu Amrit disse...

realmente...muito bom, esse texto ... deveria juntar todos e fazer uma coisa do tipo "as crônicas de PJ" e gan har um bom dinheiro... ainda te vejo frescando com a cara do Jô! kkkkkkkkkkkkkkkk

Unknown disse...

Oi, meu querido.

Adorei a historia, me emocionei. a parte que mais gostei é quando vc descreve a sensação do finalmente ter uma sandalia nova. Mas aqui para nós pq o cahorro tinha que ser willy?? Afinal o meu bebe não come chinela.rrss pelo menos não mais...

Adorei de verdade.

boO disse...

HJkiUHKIjhKIuhKjhkiUH

a minha tem um alfinete no biloto do cabestro!

JHKiuKIJHkiUKijHkiuH

amei!

"aquele cachorro v�i" foi tuuudooo!
por isso odeio poodles.

arghlemonster disse...

eu já pus um piercing no bilôto, ficou fashion, até por acidente o prego entrar dois cm na sola.

Quase me emociono, o final foi inesperadamente feliz.