Especial

"Outros que brincavam mais além
deixavam de brincar pra vir também
e cada vez mais crescia aquele batalhão de paz
Onde já marchavam mais de cem"
Roberto e Erasmo



A Guerra dos Meninos
Um novo bairro surgia ao redor da velha base aérea, junto com ele o começo dos anos 90, que não trazia muitas esperanças àquela gente, recém chegada de tantos lugares, principalmente do interior do estado. O bom era viver em casa nova, para a grande maioria, aquela nova vida representava o fato de se ter uma casa própria, tanta gente ali vinha fugindo de barracos abandonados e lugares tão horríveis de se morar. Diziam que o Ciro tinha conseguido todo o terreno, dando ao povo o direito de morar naquele pedaço.

Os primeiros anos foram se passando e, cada vez mais, o bairro se entupia de gente, no entanto, problemas antigos continuavam, muitas casas ainda não tinham nem água, nem esgoto, outras nem mesmo luz. As mulheres cruzavam as ruas, visitando a casa das outras em busca de água. Logo eram meninos e elas, carregando baldes por todos os lados, tentando amenizar as dificuldades, economizavam o pouco que conseguiam dessa dádiva. A luz ainda era nas velas, para todos aqueles sem instalação elétrica, com um natal após o outro no escuro. As lamparinas a gás manchando paredes sem reboco e o teto dos pequenos banheiros. Muitas ruas estreitas, deformadas, escuras, muitos malandros andavam por ali, lugares onde mal se via um telefone público.

As casas eram coladas umas nas outras, baixas, pequenas, a maior parte sem calçadas ou portões, apenas portas de duas bandas, janelas de madeira. As casas com luz tinham na frente o volume do medidor de luz, uma caixa de metal que se avolumava na parede pintada com tinta barata, no topo estava o mini-poste, de onde partiam dois fios tortos, balançantes, em direção aos altos e finos portes de concreto. Era aquela precariedade, a casa pequena, sem luz, sem água, que aumentava o número deles, e logo os expulsava de dentro de casa, onde não havia entretenimento, e eles ficavam nas calçadas, nas esquinas, falando da vida uns dos outros, revirando os cabelos das crianças, procurando piolhos na família, comentando as quantidades, mostrando, matando, como se fossem primatas.

A casa não segurava os meninos, que perambulavam soltos, livres pelos matagais ao redor do bairro, nos destruídos campos de futebol, campos de lama, cheios de pés de mamona. Viviam a correr, a se agrupar em caminhadas pelos bairros vizinhos, procuravam por árvores frutíferas, pés de azeitona, jambo ou goiaba, eram os mais comuns. Buscavam por carteiras de cigarro no chão, desmontavam-nas e as transformavam em cédulas, usavam todas em apostas no jogo de bilas. Esperavam a época de cada brincadeira, parte do ano compravam, trocavam ou emprestavam peões de madeira, com seus respectivos cordões, enrolando com força, fazendo os peões rodarem infinitas vezes no chão de terra batida. Durante as férias escolares era a época das raias, compravam linha, papel colorido e goma, de onde improvisavam um barato tipo de cola. Pisavam vidro até que virasse pó, com ele preparavam uma mistura com cola e resina, a fim de tornarem a linha da raia extremamente cortante, e assim, derrotar no céu os inimigos de brincadeira. Corriam atrás de coqueiros, os que tivessem palhas mais grossas e deles retiravam o palito, depois usavam facas pra deixá-los lisos. Faziam os mais variados tipos de raias, depois deixavam penduradas nos armadores de rede, esperando que a cola secasse e, no começo da tarde, hora em que os ventos eram os melhores, se agrupavam nos muros dos velhos terrenos particulares, ou nas pilhas de enormes canos de concreto armado, que a companhia de água e esgoto largara em algumas ruas desertas.

Logo aquelas crianças buscavam por diversões novas, tudo já era tão comum, tão explorado, mesmo à noite, quando grupos de rapazes entupiam as ruas, todos armados de alguma precária forma: eram as gangues, que com seus enxames faziam se esconder os moradores assustados. E os meninos, atrás de carros velhos, postes largos ou becos escuros, miravam os enormes bandos que desfilavam violentos, pareciam cheios de poder e força, com seus gritos, com seu barulho. Caminhavam para algum confronto com seus rivais, eram tantos que lotavam os quarteirões, por tarde parte eles surgiam e causavam certo medo, brotavam de algum lugar e de longe, da pontinha da rua, se podia ver quando eles surgiam, nessa hora todos se escondiam, aterrozidos dentro de casa, menos os meninos, que de algum esconderijo secreto, observavam, atentos, o passar das gangues.

De repente, os meninos queriam ser daquele jeito, começaram a se juntar em seus quarteirões, davam nomes aos grupos, que se apresentavam por siglas, nomeavam-se também, cada um com o mais esquisito dos apelidos. Não brigavam entre si, pelo menos não se matavam como as gangues originais, mas se separavam, dividiam-se. Apesar da divisão viviam em paz, pois eram só meninos, até que um certo dia, dois deles, amigos, vizinhos, combinaram uma luta entre os grupos: uma guerra. No dia seguinte estavam todos no local marcado, uma rua ladeada por casas, rua larga, lá seria o palco do confronto. Seus rostos, infantis, eram sérios, pés descalços e corpo empoeirado, estavam dispostos ao combate e se amontoavam dos dois lados, pequenas grandes gangues. Muitos daqueles meninos vestiam apenas seus velhos calções e do lado, preso ao cós, a arma para a guerra: mamonas.

- Quand'eu dissé "já" vai comessá!

E eu também estava lá, quando o ar daquelas ruas se encheu de raios verdes, que voavam nos céus do bairro de um lado a outro. Mais e mais garotos se juntavam aos dois bandos, corriam de casa, eufóricos, surgiam de toda parte, depois que a notícia da guerra se espalhou. Inimigos eram só amigos, quando mamonas de todos os lugares eram arrancadas, nos matagais, nos terrenos baldios, nos campos de futebol, nos quintais de avós e nos pés que insistiam em crescer na beira da estrada. Os meninos gritavam, e seus gritos, felizes, invadiam os arredores das casas e enchiam de vida aquele triste tempo de incertezas.

4 comentários:

boO disse...

que lindo!
^^
vc deveria dar continuidade a esses contos...
=*

Carlos Filho disse...

Cara... Seus textos são bem atrativos, deveria ter mais deles no penultima hora, sei lá, como um jornal com maior espaço para crônicas e contos...heheheh
parabéns e mais ainda, parabéns por escrever às 7h da matina....hahahahaha

Sessyllya ayllysseS disse...

Hum... Agora que entendi o último e-mail que vc me mandou... (Cérebro processando informações em nível retardado de potência.)

Esse texto tem o mesmo estilo do "Briga em Sodalina" e, como eu já dise, ambos indicam um maior nível de maturidade de um escritor consciente e sensível, crítico e preocupado com a literariedade de seus textos.

Já li aí nos comentários que há outras pessoas que pensam como eu: vc tem talento e certamente vai longe.

Se esta edição foi difícil de ser feita, pode ter certeza de que o resultado esteve à altura.

Mais uma vez, parabéns!!!

Bj!!!

Unknown disse...

Aí Jorge,as mamonas queimavam, mas quem ligava? Tem muita coisa boa daquele tempo esperando pela sua narração tão cheia de vida!