As Asas do Riso
A menina acordou de repente, sufocada com o som das asas que a engoliam em sonhos de uma cor muito cinza. Nem teve, porém, o tempo de compreender os acontecimentos todos que se lhe revelavam, pois que acabava de descobrir que engolira uma borboleta. Eram as asas que se sufocavam de entranhas escuras, e não o contrário – como lhe iludira o pesadelo.
Em princípios, sufocara-se. Sufocaram-se. Sufocaram-na. Tentou cuspir, tossir, mas as asas obstruíam todos os canais em que soprava o vento necessitado de fazer as curvas. Não teve outra escolha além daquela mais selvagem, a de engolir asas com borboleta e tudo em meio delas.
A criatura lepidóptera escorregou em tobogã apertado, por pouco não caiu em líquidos de coloração e odor suspeitos, quis voar de volta no caminho da luz e provocou a esvoação anárquica dentro da menina. As asas coçavam nas paredes do estômago, de repente cocegavam o fígado, num minuto já mexiam com os ares de tubulações quaisquer nos finalmentes do corpo. Quando nem se esperava a mudança, o caminho da fuzarca invertia-se, a trajetória avessa, e as cócegas eram sentidas em lugares mais amenos, como em alvéolos de algum pulmão ou lagos quaisquer de rins. Se chegava ao coração, o disparo na menina era maior que o susto da borboleta?
A menina remexia-se inteira, feito se fosse doida com todas as pedras que se pode contar em casos assim, nem sabia mais o que acontecia no mundo, que decerto sofria de alucinações muito graves em meio a sistemas irreais conluiados de astros imaginários – as estrelas inimagináveis. Se alguém visse aquilo, é certo que seria difícil de se explicar com argumentos de alguma lógica – que dança mais estúrdia era aquela que praticava em meio aos lençóis e de onde afinal vinha tanto lilás em pó.
No começo, nem no quarto arriscava-se em aventuras: alegou doença forte e alérgica, exigiu de si mesma o repouso absoluto sobre cama em cobertores graúdos. A borboleta mais ficava em descontrole dentro daquela quentura de prisão sem grades, estufa que dificultava seus flabelos. Esvoaçava-se de órgão a outro, entrava em canais labirínticos em busca de fuga, chegava a lugares tão cheios de falta de luz quanto os anteriores, tentava escapar dali também e voava em círculos – circunlóquios – os ciclos. Ficava doida também.
Sorte delas, somente que os tempos de primavera chegaram para a festa. O cheiro das flores novas – cujo desabrochamento tornava-se um caso de simplicidade muito artística – atraía a borboleta bem para a ponta do nariz da menina, que espirrava um pó roxo com tons de rosa e outras cores na escala do lilásico. Todo mundo sabe que o espirro é bem menos desagradável que o resguardo, por isso a menina aprumou-se e voltou a esbanjar os dias que havia de vida.
Notou que a borboleta se acalmava, satisfeita com os cheiros todos floridos que nem via – e as cócegas, agora, pareciam qualquer coisa entre uma nuvem de espelhos e uns acordes barrocos.
A partir daí, tornaram-se amigas. A borboleta anunciava com sobra de vôos se estava com fome ou sede, se queria passear ou dormir, se o calor a agradava ou a garoa entristurava. E a menina sabia sem titubeios todas as mensagens da amiga, e adivinhava-lhe com exatidão todos os desejos.
Um dia, viu um moço tão lindo que a borboleta quis vê-lo também: pela primeira vez voou bem para cima, foi parar lá nos olhos da menina e o moço nunca mais foi capaz de se esquecer daquela tragédia – os olhos que pareciam rosa na cor e piscavam que nem borboleta que bate as asas. Foi o primeiro a se conceber como vítima daqueles olhos esvoaçantes em cor roxosa. Muitos outros depois, desavisados, sofreram do mesmo caso estúrdio: hipnotizados para sempre pela menina dos olhos, quero dizer, pelos olhos de asa, ou melhor, pelas asas da menina.
Para ela, entretanto, a questão era mais grave, pois que toda vez que a borboleta subia aos olhos, assustava-se de tanta luz, apressava-se a fugir para o lado inverso – escuro – regiões quaisquer para lá do umbigo. Ia descendo até encontrar aconchego úmido e aquecido onde pudesse se acalmar. E a calma da borboleta era o desassossego da menina.
E aconteceu que uma vez a menina viu asas em olhos que ela mesma hipnotizava. E a borboleta também as viu e não soube se foi ofuscada pela luz dos ares ou pelas cores dos olhos. E desceu para os recantos calmos do umbigo e a quietude não a alcançava. E a menina foi sentindo um movimento cheio de cócegas que começavam no umbigo e transviavam para a espinha. E de repente se via obrigada a fechar os olhos e sussurrar qualquer grito de alívio. E percebia que estava era sem ar. E descobria qualquer coisa de extraordinária acontecendo em entranhas suas. E entendia que nem mais seria capaz de viver sem aquilo.
E foi aí que a menina nunca mais deixou que a borboleta saísse dali – jamais permitiria que um dia ela saísse de si.
Em princípios, sufocara-se. Sufocaram-se. Sufocaram-na. Tentou cuspir, tossir, mas as asas obstruíam todos os canais em que soprava o vento necessitado de fazer as curvas. Não teve outra escolha além daquela mais selvagem, a de engolir asas com borboleta e tudo em meio delas.
A criatura lepidóptera escorregou em tobogã apertado, por pouco não caiu em líquidos de coloração e odor suspeitos, quis voar de volta no caminho da luz e provocou a esvoação anárquica dentro da menina. As asas coçavam nas paredes do estômago, de repente cocegavam o fígado, num minuto já mexiam com os ares de tubulações quaisquer nos finalmentes do corpo. Quando nem se esperava a mudança, o caminho da fuzarca invertia-se, a trajetória avessa, e as cócegas eram sentidas em lugares mais amenos, como em alvéolos de algum pulmão ou lagos quaisquer de rins. Se chegava ao coração, o disparo na menina era maior que o susto da borboleta?
A menina remexia-se inteira, feito se fosse doida com todas as pedras que se pode contar em casos assim, nem sabia mais o que acontecia no mundo, que decerto sofria de alucinações muito graves em meio a sistemas irreais conluiados de astros imaginários – as estrelas inimagináveis. Se alguém visse aquilo, é certo que seria difícil de se explicar com argumentos de alguma lógica – que dança mais estúrdia era aquela que praticava em meio aos lençóis e de onde afinal vinha tanto lilás em pó.
No começo, nem no quarto arriscava-se em aventuras: alegou doença forte e alérgica, exigiu de si mesma o repouso absoluto sobre cama em cobertores graúdos. A borboleta mais ficava em descontrole dentro daquela quentura de prisão sem grades, estufa que dificultava seus flabelos. Esvoaçava-se de órgão a outro, entrava em canais labirínticos em busca de fuga, chegava a lugares tão cheios de falta de luz quanto os anteriores, tentava escapar dali também e voava em círculos – circunlóquios – os ciclos. Ficava doida também.
Sorte delas, somente que os tempos de primavera chegaram para a festa. O cheiro das flores novas – cujo desabrochamento tornava-se um caso de simplicidade muito artística – atraía a borboleta bem para a ponta do nariz da menina, que espirrava um pó roxo com tons de rosa e outras cores na escala do lilásico. Todo mundo sabe que o espirro é bem menos desagradável que o resguardo, por isso a menina aprumou-se e voltou a esbanjar os dias que havia de vida.
Notou que a borboleta se acalmava, satisfeita com os cheiros todos floridos que nem via – e as cócegas, agora, pareciam qualquer coisa entre uma nuvem de espelhos e uns acordes barrocos.
A partir daí, tornaram-se amigas. A borboleta anunciava com sobra de vôos se estava com fome ou sede, se queria passear ou dormir, se o calor a agradava ou a garoa entristurava. E a menina sabia sem titubeios todas as mensagens da amiga, e adivinhava-lhe com exatidão todos os desejos.
Um dia, viu um moço tão lindo que a borboleta quis vê-lo também: pela primeira vez voou bem para cima, foi parar lá nos olhos da menina e o moço nunca mais foi capaz de se esquecer daquela tragédia – os olhos que pareciam rosa na cor e piscavam que nem borboleta que bate as asas. Foi o primeiro a se conceber como vítima daqueles olhos esvoaçantes em cor roxosa. Muitos outros depois, desavisados, sofreram do mesmo caso estúrdio: hipnotizados para sempre pela menina dos olhos, quero dizer, pelos olhos de asa, ou melhor, pelas asas da menina.
Para ela, entretanto, a questão era mais grave, pois que toda vez que a borboleta subia aos olhos, assustava-se de tanta luz, apressava-se a fugir para o lado inverso – escuro – regiões quaisquer para lá do umbigo. Ia descendo até encontrar aconchego úmido e aquecido onde pudesse se acalmar. E a calma da borboleta era o desassossego da menina.
E aconteceu que uma vez a menina viu asas em olhos que ela mesma hipnotizava. E a borboleta também as viu e não soube se foi ofuscada pela luz dos ares ou pelas cores dos olhos. E desceu para os recantos calmos do umbigo e a quietude não a alcançava. E a menina foi sentindo um movimento cheio de cócegas que começavam no umbigo e transviavam para a espinha. E de repente se via obrigada a fechar os olhos e sussurrar qualquer grito de alívio. E percebia que estava era sem ar. E descobria qualquer coisa de extraordinária acontecendo em entranhas suas. E entendia que nem mais seria capaz de viver sem aquilo.
E foi aí que a menina nunca mais deixou que a borboleta saísse dali – jamais permitiria que um dia ela saísse de si.
3 comentários:
O fantástico, o poético e o insólito se misturam nessa incrível obra de Sessyllya. Notável ar feminino, difícil não perceber as mãos de uma mulher num texto tão cheio de simbologia, simbolo real, pois quantos não se acostumaram com suas próprias controvérsias, inquietudes, desejos incontroláveis, como se existessem dois num só? Sinto-me honrado por ter aqui, no quadro ESPECIAL, um trabalho tão relevante da querida Sessyllya.
Lindo. :}
sem maiores comentários...
lindo!
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