Especial

Briga em Sodalina
Quando o sol arde na cabeça daquela gente perdida, parece que eles todos enlouquecem, são ignorantes, nem sequer raciocinam a respeito das mínimas coisas. A terra é uma desgraça e eles mesmos não sentem – vivem, comem e dormem feito animais, que não calculam dias nem coisas importantes, típicas atitudes dos homens civilizados. Andavam com roupas destruídas, sorrisos doentes, com os pés acinzentados de tanta poeira das estradas sem asfalto. Pra todos os lados eles iam, rostos sujos, expectorando, lacrimejando e de cuspideiras nas calçadas, como se toda sua miséria vazasse através dos olhos, narizes e bocas. Diziam que aquela gente toda descendia de escravos, notava-se a pele marrom, escurecida pelo forte sol daquela terra, que obrigava os homens, fracos ou fortes, a penarem ainda mais em seus degradantes ofícios. Não havia muito que fazer em Sodalina, a terra era ruim para o plantio, o verde que havia ninguém queria cortar, a água o governo fez o favor de trazer pelos canos e fez ainda o favor de trazer os programas de distribuição de renda àquela gente. Parece que tal cidade só existia, lá depois de Quixadá, pra receber o Bolsa-família, pois a única agência bancária do município era uma casinha reformada e modernizada nos padrões do Banco do Brasil.

O povo era um bando de homens e mulheres sem noção, que adoravam tudo que viesse de fora. Agrupavam-se, como animais, simplesmente para acompanhar um carro velho que chegasse à cidade, trazendo as únicas novidades que eles pudessem ter. Admiravam tudo que fosse diferente, como o menino chamado Jonssu. Ele não era filho daquela terra, pelo menos não nascido lá, foi feito quando o pai se mandou pra São Paulo, um zé ninguém chamado Jão Papôco, homem que sabia o segredo dos fogos de artifício. Diziam que o Jão, nas terras paulistas, conheceu a lesada da Zelinha, mulher branquela, olhos mortos, magricela e aloirada, foi com ela, dizem, que gerou o menino Jonssu, que cresceu forte, alvo, de feições muito diferentes do povo de Sodalina, os olhos vivos, sorriso sadio, nariz menor e rosto limpo, pés limpos. Por onde passava era olhado pelas meninas, que viviam a lhe mandar cartinhas, declarações de amor, viviam de marcar encontros com ele, ao anoitecer, atrás das grandes mangueiras da pracinha. Ele todo era orgulho, mimado pela mãe branquela, querido pelas menininhas que o cercavam, deixando-o escolher quem quisesse pra namorar. Aonde chegava era bem atendido, ouvido, desejado. Aquele povo de pele escura amava o menino alvo, mais do que isso, sentia-se como ele, bonito como ele, por estar perto do rapaz.

Já o Zé-breu, todo mundo sabia, era um dos mais doidos, não se importava com nada, passava o dia na porta dos bares, nem bebia, todos sabiam disso, só ficava a perder tempo, pois não havia como ganhá-lo – sem profissão, tido como inútil. Zé-breu gastava o dia a mirar as meninas da cidade, que, ocupadas da vaidade e dadas aos namoros, viviam de cruzar as ruas de terra avermelhada, um bando de meninas enfeitadas, balançando as gastas saiazinhas de xadrez, na faceirice da juventude, sujando as chinelas de couro. O Zé-breu lá: assistindo ao passeio delas, mas nem era um menino, já estava pra lá dos trinta. O povo comenta em Sodalina que a vida dele é com as mulheres da dona Albetiza, que cobram o quanto o sujeito tem no bolso por um instante de satisfação carnal. Dizem que o Zé-breu, um dos que mais herdou traços negros, nunca teve uma mulher.

- Esta praga nunca teve cunhã! Aquilo é moço véi!
- É, ele nunca cazô, não.
- Também: num faiz porra ninhuma da vida.

Zé-breu, apesar do ócio, não fazia mal a ninguém, se dava com todo mundo, em toda a Sodalina não havia quem quisesse mal a ele. A única pessoa de quem o Zé-breu não gostava era o menino Jonssu, detestava sua pele branca, lhe invejava as menininhas, repudiava seus dez anos em São Paulo e o fato dele ter aprendido o ofício do pai.

- Égua, Zilmá, lá vem aquele meninu réi di novo.
- Quem, Zé-breu?
- U fí du Finado Papôco.
- Vixi, Zé-breu, num vai sê bexta naum, dex’u meninu.
- Ora, djabu! Eu rô lá mexê cum ninguém, carái.

A Zilmá sempre deixava o Zé-breu ficar na porta do bar, que ela herdou de um tio morto uns dois anos atrás; desde então, ela agüenta aquele bando de bêbados loucos e o Zé-breu cuspindo na rua, de pé, encostado numa das colunas do alpendre do bar, feitas com troncos de coqueiro. Ela voltou ao balcão do bar ao perceber que o Zé Pézim, um bêbado irrecuperável, já estava a cometer seus exageros outra vez. Se ela não cuidasse, ele sujava e quebrava tudo. No entanto, preocupada, ela ficou mirando o Zé-breu lá fora, já esperando que ele fosse mexer com o menino Jonssu, até que o garoto subiu na calçada do bar e gritou lá pra dentro:

- Tem quair ninguém, né, Zilmá?!
- Tem não, meu fí. Fim de mês é assim mermo.
- Bá né lugá di mininu, não.
- Vai pá merda, Zé-breu, and'ondi eu quisé, ó? Já tenho quair dizoito.
- Vai lá pu São Paulo.
- Vô mermo, ó? Ficá ven'um bexta qui nem tu, praga réa!
- Rapaiz, tu fala direito, tu é um meninu.
- Meninu u carái, seu porra! Doido réi! Vai procurá um-a rapariga, vai, punhetero!
- Punheteru é tu, fí da cachorra lôra!
- Seu féla da puta!
- S'eu fossi fí da tua mãe!



Os dois se atracaram em frente ao bar, bolando, ferindo as costas nas pedras do chão, se sujando na lama que escorria do bar, porrada na cara, o Zé-breu e o Jonssu já provando do próprio sangue, os dois de dente trancado, mediam forças como dois animais, cheios de ódio. Estavam quase se matando quando a Zelinha, que já esperava o pior, trouxe o Cabo Ferrerinha:

- Bó pará cum a putaria aí, seus baitôla! Arrente se agarr'é cum as quenga, seus bexta! Dois praga desse bolanu ai nu chão, parece cachorro doido!

E o povo de Sodalina, sujo nos pés e na cara, se juntou pra reparar o destroço, separou na base da força os intrigados, que ainda tentavam se destruir no chão, mesmo depois que o cabo Ferrerinha meteu a sola das botas nas costas dos dois brigões.

3 comentários:

boO disse...

KHoiHKJhOIuhkjhIuhJ

"batôla" nunca mais tinha visto isso!

jkhoiuhKjhiHkJhiuh

mt bom...
mt bom...

kkkkkkkkkkkkkkk

=,D

Sessyllya ayllysseS disse...

Como já disse, esse é o conto mais maduro dos que eu já li do senhor Jorge de Marques.

Embora não tenha perdido o tom irreverente que marca o seu estilo, o texto possui uma densidade mais marcada e aprimorada, um conjunto de significados mais profundos, "escondidos", que podem até passar despercebidos pelos mais distraídos ou desacostumados com esse tipo de sutileza...

Ótima edição!!!
Meus parabéns!!!
Até a próxima!!!

arghlemonster disse...

Pô, esse foi o melhor q já vi por aqui, pena q termino xôxo.

...

Já sei, é o prazer de decepcionar no final.