Especial

Thomas, olhos verdes
Ele era só mais uma criatura abandonada que, ainda muito jovem, dormia pelos sujos esconderijos das ruas, junto com outros mais velhos que se revezavam para uma hora maltratá-lo e outra protegê-lo. Porém, ficava entendido, entre todos aqueles largados, que estas vezes de violência eram, na verdade, pura brincadeira de desocupados.

A mãe biológica largou Thomas quando ainda era tudo muito cedo pra ele, e seu pai, como tantos outros da espécie, nunca fez o papel devido. Foi-se embora bem antes de nascerem Thomas e seus irmãos. Terríveis coisas da existência, mal chegara o desmame e pai e mãe não mais havia para aqueles coitados. Thomas tinha uma irmã, conhecida até então por “Pretinha”. Ela teve mais sorte, rápido foi levada por uma família que se compadeceu da desgraça da pequena: dormindo no mato com um bando de machos, sendo ela a única fêmea por ali.

Um por um foram desaparecendo, mortos ou adotados, pois outros destinos não existiam. Thomas ficou por lá muito tempo, o último dos quatro irmãos, largado, até que uma gentil senhora, que morava ali perto, voltou sua atenção para o matagal onde Thomas vivia. A morada dele era apenas um mato brabo, que se erguia numa úmida e destruída calçada de um velho casarão. Ela viu uns movimentos dentro do verde, dois amigos que brincavam de luta. Naquele infeliz jardim, ela conseguiu perceber outro brilho verde: eram os olhos de Thomas. Perdeu-se naquele aspecto. Projetou-se de encontro ao matagal e, depois que Thomas largou a falsa briga, divertimento comum daquelas criaturas, ficou mirando o danado fixamente. Ele estava carente de um lar, de cuidados e de uma mãe. Ela estava carente de alguém de posse da infância. Completaram-se. Aquela gentil senhora levou o pequeno pra casa e, dando-lhe comida e água, deu-lhe o nome que já conhecemos: Thomas.

Uma notável rejeição, infelizmente, foi sentida pelo novo membro da casa. Os filhos da dona Elza, já adultos, não ficaram satisfeitos com a chegada dele, que dormia o dia inteiro. Aquela casa bem cuidada, um lar tão seguro, a nova vida era o fim de todo sofrimento: nada mais de ter que batalhar e mendigar comida todo dia. Por muitas vezes os moleques com pai e mãe lhe atiravam pedras quando ele perambulava nas ruas. Aquilo não mais existia, Thomas agora estava feliz e, depois de um bom tempo, todos na casa também ficaram, pararam de rejeitá-lo. Ele se tornara de fato um membro daquela família.

O pequeno cresceu e se tornou um jovem forte e saudável, disciplinado e obediente à sua mãe, dona Elza. Porém, um dia suas raízes de vira-lata gritaram pra ele. A lembrança do matagal talvez já não lhe aterrorizasse mais. Sentiu um forte desejo de provar outra vez daquele entorpecente chamado “liberdade”, o que na verdade era o tempero de sua natureza. Tudo por causa de um marginal de rua, amigo da antiga desgraça, que aparecera em seu portão como se o convidasse a reatar os laços de amizade desfeitos pela separação.

– Quem é essa criatura aí te chamando, Thomas? - Disse dona Elza já assustada.

Antes que o jovem respondesse alguma coisa, aquele marginal, de tão vivos olhos azuis, fugiu levando com ele o dividido Thomas.

Uma madrugada inteira de preocupações afligiu profundamente o coração de dona Elza.
– Onde andará o Thomas, meu Senhor?

Ele se fora no começo da noite e mesmo agora, quase cinco da manhã, ainda não havia retornado. Aquele marginal o levara e só Deus sabe de quem se tratava. Thomas poderia estar envolvido em crimes, poderia estar em perigo, com fome e com frio a essa hora. Diversas indagações se acumulavam na cabeça da dona Elza e a deixavam ainda mais preocupada.

A pobre da dona Elza ficou presa num triste ritual, deitava e não dormia bem, levantava-se e caminhava até o portão na esperança de ter um alívio, porém, nada mais havia além do silêncio do dia amanhecendo. Quando conseguia dormir, o coração atormentado lhe causava terríveis sonhos, nos quais o amado Thomas sofria torturas ou acidentes. Num deles, dona Elza corria numa longa e escura avenida perseguindo Thomas que, jovem, facilmente ganhava distância, enquanto ela corria cada vez mais lenta, sentindo as pernas gravemente pesadas. Acordou depois deste sonho e percebeu que as pernas estavam dormentes. Esticou-se até a mesinha do abajur e apanhou um copo d’água, molhou as mãos e assim curou a dormência.

O sono não vinha mais de jeito nenhum. Levantou-se e pediu a Deus que trouxesse o Thomas de volta. Foi até a cozinha e tentou buscar calma num gole de refrigerante que sobrara do almoço. Voltou para a cama e o corredor ficou escuro, junto com a tela do rádio relógio: faltou luz naquele instante. Ficou tentando se acalmar no escuro, ouvindo o som de um carro que se aproximava pelas ruas do bairro. Sabia que era o carro da SUCAN pelo zumbido da máquina lançando o fumacê e, mais tarde, pelo amargo perfume invadindo a casa. Virou pro lado e tentou dormir depois que o caminhão se foi.

Um frenético remexer de telhas perturbou dona Elza. Podia ser um ladrão, mas em pleno amanhecer? Ela se levantou assustada calculando que já passava de 5:30h. Correu até o portão mais uma vez e avistou um fugitivo gato siamês. Foi nesse instante que ela tristemente lembrou-se de um par de olhos azuis que levara embora seu amado Thomas, naquelas fatídicas 7 da noite. Curou-se da tristeza e, quase louca, sentiu o coração bater mais forte quando Thomas apareceu mirando o gato siamês que já dobrava a esquina. Dona Elza chamou o danado pra dentro de casa e o levou até à cozinha, já iluminada pela luz solar que invadia a casa atravessando as frestas das telhas.

– Você deve estar com fome, meu filho.

Ela ficou parada olhando pra ele e apontado para o recém preparado prato vermelho com o nome “Thomas” em letras brancas. Dona Elza encheu uma tigela de água e colocou ao lado do pratinho dele.

– Coma tudo, beba água e depois vá dormir, Thomas.

E ele apenas respondeu com seu infantil miado de sempre

6 comentários:

Sessyllya ayllysseS disse...

Já falei demais sobre esse texto, mas não custa reafirmar o quanto ele me surpreendeu. A construção narrativa foi muito bem elaborada, de modo a distrair o leitor e não deixá-lo "enxergar" quem era o Thomas.

Gostei demais!!! Esse vai pro livro, hein?!

Bjos!!!

Unknown disse...

Acho que só posso dizer o quanto me emocionou, maravilhoso...

Fiquei deliciosamente supresa em descobrir que era o Thomas.

Em Nenhum momento vi o Thomas pelo que ele era e sim pelo sentimento de sua mãe. O torna especial e unico.

Obrigada por dividir esse texto com todos nós.

Beijos

Unknown disse...

Show de bola!

Darshu Amrit disse...

olha....me senti assistindo jogos mortais 1, onde no final vc fica com a c ara no chão de surpresa....
muito bom o texto meu amigo....

Anônimo disse...

cara, tu eh demais! senssacional;;;;;!!!!amei...

Carlos Filho disse...

Puuutz...Já até montava uma caracteristica humana pro Thomas quando veio a surpresa de quem era Thomas...hahahahaha

Muito bom o texto!