Especial

...não se mete a colher
O Celso acordou bem cedo naquele domingo, por volta das 7 da manhã, quando já estava a remexer as ferramentas. Num grande balde plástico ele escolheu uma bermuda jeans já bem suja de graxa e uma camiseta da campanha do Inácio. Calculava o trabalho que teria com todos aqueles carros e meditou durante um gole de cachaça. Balançou a cabeça pensando que não daria conta de tudo a tempo se não trabalhasse aquele dia. Por isso, resolveu perder a folga e adiantar alguma coisa, uma solda, uma limpeza nas velas, o que não fosse demais, porém fizesse parte da maioria das necessidades dos clientes. O Celso bem que pensava que o dia seria como sempre só de trabalho. Começou então a se enveredar por entre caminhos de metal, óleo e graxa: perfeito. Ele já estava acostumado àquela bendita rotina desde os tempos de pivete, quando o pai lhe dava umas boas mãozadas nas costas pelo custo da desobediência. Acabou por se afeiçoar ao serviço, aprendeu com gosto a profissão e viu que tinha manha pra coisa. Virou mecânico. Fez várias vezes quando mais jovem, o trabalho de borracheiro. Mas isso foi coisa de uns muitos tempos atrás. Celso agora tinha a própria oficina e três bons ajudantes que executavam o ofício com destreza. Naquele domingo estavam todos em casa, curtindo o digno descanso dos mortais. Mas Celso estava lá, querendo trabalho.

Era uma fresta de luz do sol, que insistia em varrer lentamente a casa, e num instante qualquer daquela manhã fez brilhar bem forte o vidro de cachaça. O homem enxugou a desagradável gota de suor que quase lhe atingia os olhos e mirou a garrafa por entre uns tortos galhos de um baixo cajueiro à toa. Pensou no pai já defunto há uns 5 anos atrás e quase se recusou a beber, mas bebeu. Arrastou uma cadeira ao terreno da oficina e por entre os carros se pôs sentado a olhar a gente que passava na rua. Bebia tranqüilo, debaixo da sombra do telhado de amianto. Lembrou-se da Joana, a loira que lhe deixou 6 meses atrás e levou embora a filha do casal, uma criancinha de pouco mais de 3 anos. Pôs-se a beber sem parar, dose após dose, até que uns gritos de mulher atrapalharam o ritual.

Um tumulto se fazia na rua, alimentado por vozes escandalosas de moleques e o alvoroço dos desocupados. Num instante a rua estava lotado de curiosos a assistirem um homem trajando uns quaisquer farrapos e espancando a infeliz da mulher. Ela corria e ele a alcançava, derrubava a criatura no chão e visivelmente entorpecido agredia a mulher. Alguns comentavam que o casal morava ali por perto e que viviam de brigas depois da bebedeira. Trocavam acusações quando o álcool lhes roubava o juízo. Ela, que costumava se vender nas avenidas, jogava-lhe na cara, aos berros, o corno safado que ele de fato era. O marido ficava de cabeça torta a devolver as ofensas com severos tapas, juntamente com longas e contundentes descrições do passado de prostituição da companheira. Destruíam-se. Mas naquele dia, a mistura de uma droga barata com a cachaça de sempre fizera dos dois bizarras criaturas que se precipitavam nos deformados calçamentos da vizinhança. Tombou no chão outra vez, a mulher, e agora justo na frente da oficina.

Sentado em sua sobrevivente cadeira de plástico, o mecânico guardou na cabeça ainda muita lucidez e na garrafa ainda muita cachaça. Viu aquela mulher estendida no chão a ser pisoteada e pensou na lourinha. Ele nunca que faria um negócio desses com ela, já deixara escapar um tapa, é verdade, mais foi no calor da discórdia e foi só uma vez. Bater desse jeito numa mulher? Jamais! Ergueu-se com a coragem que a bebida lhe dera e quis vasculhar umas tralhas da oficina, de repente avistou uma larga tira de borracha, que provavelmente era um desses revestimentos por onde passa o vidro da porta do carro. Correu à rua a gritar pelo o miserável agressor. Jogou-lhe um palavrão e atingiu-lhe em cheio no meio das costas, arrancou do safado um tremendo gemido, que torto buscou fuga. Mais ágil que o desgraçado, Celso se empenhou no açoite e desferiu os mais fortes golpes que pode contra aquele homem. Era uma surra exemplar executada contra tal covarde sujeito, quando sem esperar, o herói das desamparadas ex-prostitutas foi atingido cruelmente com um resto de madeira que perambulava nas ruas. Um choque e um susto quando ele se virou pra se defender do golpe e um outro ataque ainda mais potente ele recebeu: "não bata no meu marido, não!" disse a mulher, que segundos atrás estava jogada ao chão, feito um cachorro morto, a ser chutada pelo marido que agora defendia. Celso indignou-se. Foi tudo em vão, afinal... Vão embora daqui, seus porras! Se não mato os dois! Vão embora! E o mais destorcido dos casais deste mundo começou a se retirar diante do frenesi da multidão que entupia aquelas ruas suburbanas.

7 comentários:

Unknown disse...

Que horror!!

Coitado do cara, tenta ajudar e aquela louca ainda bate nele. Ela mereçe o que recebe do marido.

Agora fiquei intrigada do pq da loirinha ter deixado o cara, será que foi pelo tapa??

De toda forma,creio que nunca mais ele mete a colher ou qualquer outra coisa...

Beijos

Carlos Filho disse...

"o mecânico guardou na cabeça ainda muita lucidez e na garrafa ainda muita cachaça"

Me lembrou as aulas de filosofia com o Prof. Euzébio. Se dizia bebado pra dar o ar de filosofia de boteco. E não é que dava certo!

Ciro disse...

Sujeito quando bebe fica corajoso mesmo, né?

Não adianta o Celso se indignar, mas tem mulher que é assim mesmo. Parece que goooosta! Nunca vi!!

Belo texto.

Anônimo disse...

rapaz.... é cada uma que aparece. mas é como diz o texto, "não se mete a colher"...rs mas eu tinha só não tinha chamado ela de "santa" mas o resto que viesse eu tava esculhambando....rs

Anônimo disse...

rapaz.... é cada uma que aparece. mas é como diz o texto, "não se mete a colher"...rs mas eu tinha só não tinha chamado ela de "santa" mas o resto que viesse eu tava esculhambando....rs

arghlemonster disse...

Isso é uma cena clássica, gostei da cadeira sobrevivente, tinha uma desas que faleceu mês passado.

Finíssimo o texto !!

Sessyllya ayllysseS disse...

Ótimo texto!!!

A estrutura narrativa ficou super bem trabalhada, vc caprichou na escolha das palavras... Senti até um certo clima de emoção nas descrições do bebum, o cara sofria de verdade.

Agora, fala sério, a coisa sempre acontece assim mesmo: é só querer limpar a merda dos outros que sobra sujeira pra gente.

É por isso que eu digo, como diria um amigo meu: "ema, ema, ema, cada um com seu problema". rsrsrs

Gostei demais mesmo! Parabéns!