Especial

Francisco José

Quando Francisco José estava prestes a ingressar no ensino médio sonhou muitas vezes que seria o maioral. Ele se perdia na esperança de ser feliz e se dar bem com as garotas, como na Malhação, cujos capítulos ele perderia agora por ter se matriculado no turno da tarde, já não tinham mais vagas de manhã. Um colégio novo, diferente da escola aonde ele terminara a oitava série, aonde ele era o "gordim" da sala. No Joaquim Alves ninguém se importava com os desenhos que ele fazia, inspirado nos animes que ele tanto adorava. O Castelo Branco era um colégio maior, cheio de gente nova, pessoas que ele nunca tinha visto na vida, de conhecida só a marcinha, que o convencera a estudar por lá. Aos poucos foi se enturmando com um e com outro, no básico parecia que o pessoal gostava mais dos desenhos que ele fazia. Pediam sempre pra que o Francisco José fizesse algum dos Cavaleiros de Ouro ou então do Goku. E assim ele vivia em paz sem ninguém lhe importunando pelo fato de ser gordo.
Marcinha guiava a vida de Francisco. Não era tão gorda e tão grande quanto ele. Ela era mais baixa e menos redonda. Era amiga fiel do desenhista. Francisco ganhou dela, não sei por que, o apelido de Sol. Era assim que Marcinha o chamava: Sol pra cá, Sol pra lá. Muita gente falava primeiro com ela pra conseguir dele algum desenho. O tempo passou e Sol fidelizou um punhado de amigos. O ano seguinte não era mais no básico, Sol agora era aluno do segundo ano, foi estudar de manhã pra poder assistir a Malhação, conseguiu vaga dessa vez. Alguns de seus amigos foram também, incluindo Marcinha. As fortes e constantes chuvas do começo do ano deixavam o Sol mais tímido. Aquele amontoado de gente na quadra coberta, escutando o diretor Rosendo em seu discurso de abertura do ano letivo parecia lhe deixar um tanto inquieto. Sol não se dava bem com multidões e fugir das goteiras na arquibancada era tarefa tão desagradável.
- Vamo Marcinha, vamo ali mais pra baixo.
- Vamo.
Caderno debaixo do braço esquerdo e um estojo dos seus lápis favoritos protegidos na mão direita. Sol e sua amiga ouviam desnecessariamente as palavras do Diretor no seu falatório aos novatos. Riam-se dos famosos tremeliques dele, um monte de tiques nervosos que tornaram Rosendo uma figura lendária: piscando o olho, labendo o canto da boca e balançando o chaveiro perto do rosto. A microfonia no som do colégio incomodava como coceira os ouvidos de sol, que com dificuldade meteu o indicador direito no ouvido esquerdo. Seria mais fácil se ele não fosse canhoto. Não usou a mão esquerda porque estava com o antebraço inteiro engessado. Tinha machucado gravemente a mão quando esbarrou numa árvore. O acidente foi nas férias, em janeiro, quando ele, já com 16 anos, estava brincando de "jôu-atrepa" na rua. Subiu numa calçada alta, o jôu tava de marcação com ele, fez "relogim" pro coitado, que antes de ver os indicadores do seu carrasco se encontrarem saiu correndo. Correu o mais que pode, mas inesperadamente o biloto da havaiana se arrancou e tropeçando Francisco José se tacou num pé de peão ali da rua: quebrou uns dedos, ficou sem desenhar. De gesso na mão ele teve que começar mais um ano.
Sol foi com Marcinha procurar sua nova sala, subiram ao pavimento dois e encontraram o 2ª-C. Marcaram com os cadernos o local de cada um e no corredor do segundo andar esperaram a chegada do primeiro professor. De repente, lá vem a Dona Graça, professora de geografia, magrinha, branquela de óculos grandes, baixinha e de uma voz aguda, tão fina quanto seu talhe de mangueira de jardim. O que ela tinha nos olhos não sei eu, mas parecia algo entre a timidez e a sonolência. Já era uma mulher madura, quase passando da hora, e ainda trazia no peito aquela insegurança. Controlou-se e conduziu a aula, passeando de um lado ao outro da frente da sala, com passos curtos em função da longa saia jeans, do tipo que as crentes usam muito. Dona Graça falava com a turma sobre a matéria, uma geografia moderna que estuda o efêmero, numa voz fanhosa ao som do toc-toc macio de sua sapatilha preta. Ela começava a falar sobre o material que usariam pra estudos, o livro de segundo grau escolhido pelos professores, quando a orientadora e ex-diretora Celina Maia interrompeu educadamente as palavras da Dona Graça com sua voz sempre tão amistosa:

- Minha querida, vamos escolher o líder da sala.
- Vamos, sim senhora. Respondeu Dona Graça com um sorriso sincero.

Sol, que sentara no centro-esquerdo da sala de aula, ouvia atentamente as gentis palavras da Dona Celina, uma mulher na casa dos 60 que começou a estudar tarde e se formou pedagoga quando já não era mais nenhuma mocinha. O marido lhe reclamava muitas vezes o fato dela querer levar à frente essa história de faculdade. Formou-se pedagoga, contra o gosto do sujeito seu marido, mas se formou. Fico imaginando como foi que ela conseguia subir aquela rampa espiral que dá acesso ao segundo andar, aquilo era íngreme demais até para um jovem. Tenho a impressão que ela subia assim: dois passos pra frente, um pra trás. Ela já tava tão acabadinha. Foi lá no 2-C pra escolherem o líder. Quem se candidata? Umas três pessoas e mais a Wanda. Uma loirinha de belos seios fartos, que animadinha quis concorrer à liderança da turma. Entre "fiu-fius" e gritos de "eita, gostosa!" o exercício estudantil da democracia começou. É claro que só deu a Wanda, e como ela dava... Por alguns instantes aquela pequena eleição teve o foco das atenções voltado repentinamente para Francisco José - o Sol. Pois quando chegou a vez dele votar, voto aberto, a Celina dirigiu-se a ele, que não concorria à liderança:

- Meu filho, qual é o seu voto?
- Francisco José. Respondeu o desatento do Sol em meio às sonoras gargalhadas dos alunos.
- Não, meu filho, eu estou perguntando a você qual é o seu voto. Disse Celina serenamente.
- Ah. Meu voto é pra Wanda.

Coitado do Sol, que trocou as bolas e selou seu fatídico destino. Pois o número 30, José Hílton, moleque que era não poupou o pobre do "gordim". Ele esperou que a Celina Maia saísse da sala e antes que o barulho voltasse soltou em alto e bom tom:

- Qual é o seu voto, meu "fí"? É Francisco José, professora. “Né pra tu dizer teu nome não doido, é pra dizer teu voto”. E começou a rir do coitado, batendo várias vezes a mão direita aberta contra o poço formado pela mão esquerda. Em pé, o repetente José Hílton, que também atendia pela alcunha de Cirílo, se divertia com o bobo engano de Sol. O malandro sentou-se e batendo a mão na cadeira roubou a atenção dos outros alunos cantando:

- Francisco José! Francisco José!

A turma toda então seguiu Cirílo num notável coro:

- Francisco José! Francisco José!

Dona graça pediu gentilmente por silêncio, a turma atendeu. Triste lá ficou o pobre do Sol, vermelho de vergonha e vitimado pela molecagem de Cirílo. Ainda bem que Marcinha tava lá pra lhe reconfortar. Depois disso, jovem, todos os dias o pobre do Sol tinha que agüentar o corinho regido pelo maestro Cirílo:

- Francisco José! Francisco José!

Todo dia a mesma desgraça. Sol já não suportava mais tal situação. Ele aproveitava as idas ao banheiro pra chorar um pouco, pois seu peito cheio de colesterol ruim batia apertado por aqueles gritos. Sonhou em ser mais forte, poderoso feito o Kakaroto. Seria bem mais fácil enfrentar aquele diabo magricelo. Bastava uma mão, a mão fora do gesso. Porém Francisco José era um impotente diante do medo que sentia. Rezava só no pensamento com medo do cão levar embora suas preces. Pedia a Deus que lhe ajudasse. Pediu várias vezes que o Senhor matasse o Cirílo. Bolava mil planos pra ferrar o safado, mas todos eles jaziam falhos tão logo se concretizavam em sua mente atormentada. Pensou em pagar uma gangue do bairro pra dar uma surra no marginal, era muito simples de fazer, isso tava em moda na época, os caras esperariam pelo sem-vergonha e lhe encheriam de porrada. Pronto! Mas cadê coragem? Cadê dinheiro? Sol nem era valente, nem trabalhava. O pai lhe faria muitas perguntas, não lhe daria um centavo, ele não saberia mentir pro velho.

O destino muda muitas e muitas vezes, pois até a surda muda. O que parece pequeno dentro do bolso pode ser grande fora das calças. Um belo dia, sol terminava um pão de queijo ao lado de Marcinha, encostado como ela no corredor. Muitos alunos estavam ali, naquele lugar, esperando por seus professores depois do intervalo. Cirílo subiu, com outros dois pilantras que o seguiam sempre. Chegou ao corredor, avistou Francisco José, riu-se de imediato mirando o gordo. Sol já havia comido todo o pão de queijo, no braço nenhum gesso em quase 10 dias, mão completamente recuperada. Franziu o cenho, empinou os lábios apertados e por um instante sentiu-se inquieto, respirou fundo e não conseguiu parar a respiração ofegante. Cirílo se aproximou e rindo alto pronunciou o nome de Francisco José roçando o dedo indicador sobre as suas rechonchudas bochechas. Sol fechou bem a cara e cerrou totalmente os punhos. Agarrou Cirílo pela blusa da farda e aplicou-lhe um tremendo soco no meio da cara do malandro, que cambaleou desesperado cavando a fuga. Cirílo escapou a blusa da mão de Sol, inutilmente, pois foi agarrado logo em seguida pelo braço. Ainda tentando se levantar Cirílo recebeu outros dois impiedosos golpes na cara de carranca. Ao estremecedor som das contundentes ovações dos alunos que se amontoavam no corredor do segundo andar, Sol puniu gravemente o seu falido perseguidor. Parou de bater no infeliz, e glorificado, Francisco José soltou Cirílo antes que algum funcionário do colégio fosse atraído pela confusão. Quando o temido coordenador Farias subiu pra ver o que estava acontecendo, o espetáculo já havia terminado e a multidão se dissipado, não deixando prova alguma do acontecido. Naquele dia, Farias não pôs o nome de ninguém no seu livrinho de advertências. Cirílo se recompôs e voltou para sala junto com os outros alunos do 2-C. Doloridas marcas no rosto não o deixavam em paz. Daquele dia nem Sol e nem Cirílo esqueceram.
Sol voltou a ser o jovem pacífico de sempre. Cirílo continuou moleque, mas por ter aprendendo a lição, nunca mais mexeu com o cara que lhe pos de quatro no chão. Gente sem vergonha apanha é na cara, Cirílo teve o que mereceu. A valentia de uma criatura dessas se tira mesmo é na base da porrada. E de vez em quando a honra de um homem se lava com umas boas pancadas.



NOTE: Sol, aonde quer q você esteja eu torço muito por você, desculpa qualquer coisa. Quem quiser ver o Cirílo basta ir ao Aldeota Open Mall, que ele está lá vendendo zona-azul e pastorando os carros.

3 comentários:

Anônimo disse...

"A valentia de uma criatura dessas se tira mesmo é na base da porrada."
hkIHUkiuhKIUhkiuHKIUhkiuHKihukuhKihu

ótima história!
a doidina da vitamina c devia fzr o msm q Sol!

hkIukhKiuhkiuhkUhkiuh

Hermison do Vale disse...

Adorei a estória dos dois velhacos...

Valeu!!!!

Anônimo disse...

kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk


adorei a história...rs
pense.... não me recupero dos trimiliques do roseno...um dia ainda conheço....rs